quinta-feira, 10 de julho de 2008

Conflito de deveres ( da minha autoria )

Desde já importa realçar qual o princípio que informa a existência e limites do conflito de deveres , pois bem trata-se de um princípio de ponderação de interesses ou de bens jurídicos ( tal como acontece no direito de necessidade ) , então como distinguir o conflito de deveres e o direito de necessidade ? , em primeiro lugar no direito de necessidade apenas se podem sacrificar interesses ou bens jurídicos de valor manifestamente inferior , enquanto que no conflito de deveres podem licitamente sacrificar-se interesses ou bens jurídicos de valor inferior ou igual àqueles que se pretende salvaguardar . Os pressupostos do conflito de deveres são a saber : a existência de um conflito entre o cumprimento de deveres jurídicos ou ordens legítimas , mas a propósito deste pressuposto colocam-se várias questões , a maioria da doutrina defende que os deveres jurídicos ou ordens legítimas em causa têm que ser da mesma natureza .
Tal significa que , na situação de conflito de deveres podem surgir dois tipos de situações : 1- deveres ou ordens relativas a acções ou a omissões ; 2- ou o conflito entre um dever de agir e um dever de omitir , ora de acordo com a doutrina maioritária , só na 1ª situação existe a causa de exclusão da ilicitude que é o conflito de deveres . Exemplifiquemos e analisemos cada uma das situações , conflito de deveres ou ordens relativas a acções ou a omissões , um exemplo de uma situação clássica de conflito de deveres , numa unidade hospitalar existe um único aparelho destinado a garantir a sobrevivência de doentes de determinada doença . Chegam a esse hospital , ao mesmo tempo , dois doentes que carecem de tratamento com esse aparelho , mas é evidente que só um deles pode ser submetido ao tratamento , assim ao abrigo do art.º 36/1 do código penal , e sendo o perigo idêntico para ambos os doentes , será lícito o comportamento do médico que ministrar o tratamento a um deles , deixando o outro morrer. Partindo do exemplo dado , suponhamos que o aparelho se encontra adstrito ao tratamento de um doente quando o segundo se apresenta com necessidade de ser tratado com o mesmo aparelho ( conflito entre um dever de agir e um dever de omitir ) , nestas situações , a doutrina dominante considera que não cabem na norma do art.º 36/1 , o médico que tirasse o aparelho que já estava ao serviço de um doente , para assistir outro , causando assim a morte do primeiro , não teria praticado um acto lícito justificado por um conflito de deveres .
Logo o acto só será justificado por conflito de deveres quando os interesses conflituantes forem de natureza idêntica , quando em ambos os casos se trate de um dever de agir ou quando em ambos os casos se encontre um dever de omitir , mas o pressuposto do conflito de deveres exige uma segunda clarificação : o dever sacrificado tem de ser de valor inferior ou igual àquele que é salvaguardado , nos termos do art.º 36/1 não pode ser superior , a situação em que é sacrificado um valor , interesse ou bem jurídico igual àquele que se salvaguarda , coloca um questão à qual a doutrina tem respondido de forma diversa : 1- então estará em causa uma situação de exclusão da culpa ( Jeschek ) ; 2- será uma situação de exclusão da ilicitude ( Dr. Rui Pereira e art.º36/1 ) .
Tentemos compreender a posição de Jeschek e tomar uma posição , Jeschek pretende significar que ( numa situação em que estejam em causa conflitos de deveres ou de bens jurídicos de valor igual ) o ordenamento jurídico não pode dar nenhum comando ou permissão ao agente . Assim , no exemplo dado atrás o ordenamento jurídico é indiferente que o médico salve o doente A ou o doente B , o ordenamento jurídico não só não tem que tomar uma decisão desse tipo , como tal lhe é impossível , esta posição de Jeschek é aceitável , mas dela podem retirar-se ilações que de forma alguma podem ser aceites , com efeito o ordenamento jurídico não se desinteressa da actuação do médico , numa situação deste tipo .
Ao contrário pretende que esse médico , em tal situação de conflito , salve um dos bens jurídicos , se o não fizer estará a cometer um tipo de crime que poderá , porventura , ser de homicídio que não é justificado , ora a partir deste dever que o ordenamento jurídico impõe ao médico ( sendo o conflito entre interesses ou bens de igual valor ) que se deve compreender como uma verdadeira norma permissiva que contém uma verdadeira causa de justificação para tal conflito.
O mesmo entendimento é , pelo menos a um certo nível , imposto pelo art.º 36/1 este declara expressamente que o conflito de deveres nessa situação é uma causa de justificação e não de exclusão da culpa , ao art.º 36/1 poderá objectar-se a classificação feita pelo legislador não é decisiva . É certo que o legislador , em matéria de classificações ou definições , está em pé de igualdade com o intérprete , não sendo obrigatório concordar com as opiniões do legislador .
Simplesmente no art.º 36/1 , a qualificação do conflito de deveres como uma causa de justificação é algo mais do que uma simples definição ou uma classificação torética do legislador penal , é algo mais , porque tal classificação do legislador acarreta determinado tipo de consequências , que são parcialmente diferentes conforme se trata de uma situação de exclusão da ilicitude ou de exclusão da culpa : ambas excluem a responsabilidade criminal ; mas em termos práticos ( como já vimos ) ambas acarretam consequências diferentes quer no que concerne à legítima defesa quer à comparticipação criminosa , assim : se , no exemplo dado acima , o mé dico actua ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa , então é exercível contra ele a legítima defesa ; mas já não será admissível a legítima defesa se entendermos que o médico actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude .
Ao nível da comparticipação diremos que , se o médico actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude , os seus cúmplices ou instigadores não seriam , sem mais imputáveis , assim , os enfermeiros que auxiliam o médico estarão praticando um facto lícito , não se podendo colocar , face a eles , o problema da punibilidade , ao contrário se considerarmos o conflito de deveres como causa de exclusão da culpa , então teremos de apurar a punibilidade de toda a gente , individualizadamente , de acordo com a existência ou não de culpabilidade em relação a cada um deles ( pois a culpa é algo de pessoal e intransmissível ).
O art.º 36/1 , ao menos nas suas consequências , impõe-nos que tratemos o conflito de deveres como uma causa de justificação , não o fazer seria uma violação do princípio da legalidade , pois tenderia a alargar a responsabilidade criminal do agente ou dos comparticipantes .
Os requisitos do conflito de deveres são dois , a saber : que seja cumprindo o dever de valor igual ou superior àquele que se não cumpre , este requisito resulta claramente de tudo quanto já foi dito atrás , isto é , que o dever sacrificado tem de ser de valor inferior ou igual àquele que é salvaguardado , portanto em situação de conflito de deveres , o agente não pode actuar com indiferença : estando em conflito um bem jurídico inferior e outro superior , é este que deve ser defendido ; estando em conflito dois bens jurídicos de valor igual , deve ser defendido um deles . Do que foi dito atrás resulta perfeitamente claro este requisito , quanto ao segundo requisito : o conhecimento da situação de conflito e do valor relativo dos deveres ou ordens nele envolvidos , este segundo requisito constitui o elemento subjectivo desta causa de justificação .
Tomandoaindao caso do médico , o médico deixa de salvar o doente A para salvar o doente B , mas persuadido de que o doente A se encontra numa situação de perigo para a vida , enquanto o doente B tem uma doença irrisória e pouco importante , mas salva-o porque é seu amigo , neste caso , faltará o elemento subjectivo exigido por esta causa de justificação , embora se verifiquem todos os pressupostos e requisitos objectivos .
Portanto , desde que o agente conheça a situação de conflito e o valor relativo dos deveres ou ordens nele envolvidos , nada mais é requerido para que a causa de justificação funcione plenamente . As motivações do agente poderão ser relevantes no plano ético ou moral , mas não quanto à solução do problema que nos ocupa .
O elemento subjectivo do conflito de deveres é de carácter puramente intelectual , assim , quando falte , deve aplicar-se analogicamente o art.º38/4 , sendo o agente punível com a pena aplicável à tentativa ( é o caso do médico que salva o doente que se encontra em situação de perigo ligeiro , deixando morrer o outro ) .
Durante muito tempo não tomou a doutrina penal consciência da especialidade e autonomia do conflito de deveres perante a teoria do estado de necessidade justificante , também aquele se reconduziria , na sua figuração jurídico-penal , aum conflito de bens ou interesses cuja solução deveria , correr parelha com a do direito de necessidade , é hoje geralmente aceite doutrina diversa , sem prejuízo do reconhecimento unânime , pode dizer-se de que o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento justificador do direito de necessidade .
Em todo o caso , a colisão de deveres assume especificidades e decisivas , em termos de solução do conflito que o autonomizam face ao direito de necessidade , dessa consciência é fruto a regulamentação autónoma que o conflito de deveres recebe no nosso código penal , na 1.ª parte do art. 36.º / 1 , 1.ª parte , sem por isso deixar de dever afirmar-se que , em tudo quanto não sejam especificidades do conflito de deveres , valerá para este a teoria que acima se expôs para o estado de necessidade justificante .
Não é todavia unívoco longe disso determinar quando existe um verdadeiro conflito de deveres ( e não apenas um conflito meramente aparente ) para efeito do art.36.º/1 , 1.ª parte , autêntico conflito de deveres susceptível de conduzir à justificação existe apenas quando na situação colidem distintos deveres de acção , dos quais só um pode ser cumprido , no exemplo da escola , quando o pai vê dois filhos em risco de se afogarem e apenas pode salvar um deles .
Dir-se-á e tem-se na verdade dito que ela cobre com o manto da licitude condutas arbitrárias dos agentes , nos exemplos , do pai que escolheu salvar o acidentado C em vez de D , é naturalmente verdade mas sendo a alternativa deixar perecer A e B , ou C e D , não se vê que argumento moral , social ou jurídico possa retirar-se daqui contra a solução legalmente imposta , para além disso cumpre acentuar que tal como no direito de necessidade do art.34.º também no conflito de deveres o resultado da ponderação ( igualdade dos deveres , superioridade ou inferioridade do dever cumprido ) não deve resultar simplesmente na hierarquia dos bens jurídicos em colisão , mas da ponderação global e concreta dos interesses em conflito .
Se , por isso , uma corporação de bombeiros é chamada simultaneamente para apagar dois incêndios , ela deve dar preferência ao que se revele de maiores proporções , ou contenha maiores perigos para as pessoas , ou ameace bens patrimoniais de maior valor . O médico chamado ao local de um acidente deve , na medida do possível , prestar socorro segundo a ordem de gravidade dos ferimentos , aquele sobre quem recaia um dever geral de auxílio , nos termos do art. 200.º , deve socorrer primeiro o seu filho acidentado e só depois , se possível , os companheiros , porque relativamente ao filho pesa sobre ele um especial dever de garante ( art. 10.º / 2 do código penal ) .

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