segunda-feira, 2 de junho de 2008

SIMULAÇÃO

III. DA SIMULAÇÃO

A simulação traduz-se, nos exactos termos do disposto pelo artigo 240º, nº 1, do Código Civil (CC), na divergência intencional entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, mediante acordo entre este e o declaratário, com o intuito de enganar terceiros.
Porém, a prova da simulação é tarefa, extremamente árdua, porquanto os simuladores procuram rodear-se das maiores cautelas, não deixando vestígios que possam servir para contrariar os seus intentos, procurando, em geral, as trevas, fugindo de testemunhas, uma vez que ainda está pouco divulgada entre nós a pratica das contradeclarações, não se realizando, em regra, portanto, a prova directa da simulação .
Tomando em consideração os circunstancionalismos fácticos demonstrados, importa reter que, por escritura datada de 2 de Maio de 2001, celebrada no 1o Cartório Notarial de Aveiro, a ré B..., representada pelos gerentes José Arlindo e Arlindo Parracho, declarou vender à ré C..., e esta, representada pelos administradores José Mário Mirassol Ribeiro e Manuel José Pires, declarou comprar-lhe, trinta e seis lotes dos que ainda lhe restavam, pelo preço global de 185.000.000$00.
Porém, não se provou o valor real de mercado dos diversos lotes envolvidos na aludida escritura pública, por terem merecido resposta negativa os pontos nºs 3, 5, 7, 9, 11, 13, 14, 16, 18 e 20, da base instrutória, apenas se tendo demonstrado, conforme consta do teor daquele documento autêntico, que a transacção se consumou, tão-só, pelo preço de 185.000.000$00, não obstante o valor comercial da totalidade dos lotes vendidos, segundo a alegação do autor, ascender a 616000000$00.
A isto acresce que se não provou que “José Arlindo e Arlindo Parracho não quiseram vender, em representação da Ferreiras, Ldª, aqueles lotes” (21º), que “nem o José Mirassol Ribeiro e José Pires os quiseram comprar para a Ferro & Ribeiro, Ldª” (22º), que “nenhum preço foi pago pela então Ferro & Ribeiro, Ldª” (23º), que “nem a Ferreira, Ldª recebeu qualquer valor do José Mirassol e do José Pires ou da sua representada” (24º), que “os compradores não dispunham de capitais que lhes permitissem adquirir os lotes” (25º), que “o negócio destinou-se exclusivamente a por a recato os lotes, de modo a que nada reste por onde o autor se possa fazer pagar dos seus créditos” (26º), que “a Ferreira, Ldª já não possui, praticamente, qualquer património” (27) e que “a transformação da Ferro & Ribeiro, Ldª em SA destinou-se a possibilitar a transferência das respectivas acções ao portador a José Arlindo e Arlindo Parracho, e agora às suas herdeiras, de forma anónima” (1º).
Será, por isso, razoável sustentar a intenção simulatória das rés, como pretende o autor?
O apelante não questionou a autoria da escritura pública, ao não arguir a falsidade do documento, nos termos das disposições combinadas dos artigos 370º a 372º, do CC, o que corresponde ao estabelecimento da sua autenticidade .
Assim sendo, não é controvertido o valor de prova plena do documento, quanto às declarações negociais de ambas as rés nele representadas, atento o preceituado pelo artigo 371º, nº 1, do CC, mas já não, em princípio, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real dos outorgantes, isto é, quanto ao valor de prova plena de que as mesmas sejam verdadeiras , não tendo ficado provada a sinceridade das afirmações dos outorgantes, ou antes que estas não tenham sido viciadas por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado .
Estabelecido que um documento autêntico tem força probatória plena, as declarações dos seus outorgantes, indiscutíveis na sua materialidade, têm a eficácia que lhes competir, segundo outras normas de direito material, alheias ao instituto do documento, ou seja, revestindo a natureza de declarações de ciência, terão, se desfavoráveis, eficácia como confissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 371º, nº 2 e 358º, do CC , enquanto que, se forem declarações de vontade, se constituírem ou integrarem um negócio jurídico, a validade deste só poderá ser posta em causa, nas hipóteses tipificadas de divergência entre elas e a vontade real dos declarantes ou de vício na formação desta , porquanto, tratando-se de declarações de índole dispositiva ou negocial, o documento vale como título constitutivo da obrigação, faz prova plena do negócio jurídico realizado, a qual, porém, não se estende, nem à sinceridade, nem à eficácia jurídica das declarações .
Na hipótese em apreço, as declarações de vontade das partes subscritoras do documento em análise, constituem, por si só, um contrato de compra e venda, porquanto este não é um negócio real «quoad constitutionem», mas antes um negócio real «quoad effectum», em que a constituição da relação contratual não depende da entrega da coisa, que não é seu elemento constitutivo, uma vez que basta, para a celebração do negócio jurídico, o consenso das partes, dando-se, por via de regra, a transferência do direito, designadamente, real, objecto do negócio jurídico, por mero efeito do contrato, nos termos do disposto pelo artigo 408º, nº 1, do CC .
E, mesmo para quem entenda que a declaração não é o único elemento da estrutura do negócio jurídico, mas, também, igualmente, a vontade real das partes, tal não significa que esta tenha de ser provada, representando a declaração um facto constitutivo da situação jurídica resultante do negócio jurídico, enquanto que a falta da vontade real correspondente constitui, com sujeição aos requisitos exigidos para cada tipo de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, um facto impeditivo dos efeitos da declaração, que, como tal, tem de ser alegado por aquele contra quem o negócio jurídico é feito valer.
Assim, só através da alegação e da prova da ocorrência de algum dos casos tipificados de divergência entre a vontade e a declaração das partes ou de vício na formação da vontade, é que podia ser posta em causa, não já a força probatória do documento que formalizou o contrato de compra e venda, que faz prova plena do facto constitutivo do contrato, mas a sua validade ou eficácia jurídica .
E foi isto que o autor pretendeu alcançar, ao alegar a ocorrência, no caso concreto, dos requisitos da simulação, isto é, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros, o que significa que, se toda essa matéria factual tivesse sido provada, ao contrário do que aconteceu, a simulação dever-se-ia considerar como verificada.
A divergência entre a vontade real e a vontade declarada das partes traduz-se, na simulação, em cindir os efeitos vinculativos do negócio jurídico [internos, entre as partes], dos seus efeitos reflexos [externos, perante terceiros], desejando apenas estes, destacados do seu fundamento normal, que é o próprio vínculo negocial, porquanto, ao celebrarem o negócio, as partes não querem para si o que declaram querer, pretendendo, tão-só, criar uma aparência negocial para enganar terceiros.
Perguntando-se, nos pontos nºs 21, se “José Arlindo e Arlindo Parracho não quiseram vender, em representação da Ferreiras, Ldª, aqueles lotes”, 22, se “nem o José Mirassol Ribeiro e José Pires os quiseram comprar para a Ferro & Ribeiro, Ldª”, 23, se “nenhum preço foi pago pela então Ferro & Ribeiro, Ldª” e 24, se “nem a Ferreira, Ldª recebeu qualquer valor do José Mirassol e do José Pires ou da sua representada”, da base instrutória, e tendo, todos eles, conhecido resposta negativa, apenas a respectiva reposta afirmativa permitiria concluir que a vontade declarada não correspondia à vontade real das partes, que estas não tinham querido o contrato de compra e venda analisado.
Porém, esta materialidade, respeitante à alegada divergência entre a vontade real e a vontade declarada, não se demonstrou, e bem assim como aquela que se refere ao acordo simulatório, que constitui uma recíproca manifestação de vontade das partes sobre a divergência entre a declaração e a sua vontade efectiva, e, também, ao intuito de enganar terceiros.
Com efeito, a prova da simulação faz-se, quase sempre, por meio de indícios ou presunções, mais ou menos frisantes, de onde transpareça e se deixe inferir a existência da simulação.
Na tese do apelante, existem suficientes indícios que comprovam a simulação do contrato de compra e venda dos trinta e seis lotes de terreno.
Efectivamente, o contexto alegatório invocado pelo apelante, na petição inicial, afigura-se, «prima facie», favorável ao entendimento que propugna, porquanto a relação de intimidade entre os outorgantes constitui um dos sinais que a doutrina aponta como dos mais reveladores da suspeita de simulação, por ser, em regra, entre íntimos amigos que se efectuam os conluios de que resultam os actos, absolutamente simulados .
Porém, as respostas negativas aos aludidos pontos da base instrutória, não permite a recolha de material indiciário probatório que, em combinação com outros elementos, seja susceptível de denunciar a simulação, afastando, terminantemente, a verificação dos seus requisitos estruturantes, isto é, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros, razão pela qual se não provou a causa de pedir em que assenta o pedido formulado pelo autor.
Assim sendo, não tendo o apelante demonstrado a invocada simulação, não é questionável o valor de prova plena do contrato de compra e venda celebrado entre as rés, não só quanto às declarações negociais de ambas, mas, também, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real, ou seja, quanto ao valor de prova plena de que as mesmas sejam verdadeiras.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações do apelante.

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CONCLUSÕES:

I - É através da alegação e da prova da ocorrência de algum dos casos tipificados de divergência entre a vontade e a declaração das partes ou de vício na formação da vontade, que pode ser posta em causa, não já a força probatória do documento que formalizou o contrato de compra e venda, que faz prova plena do facto constitutivo do contrato, mas a sua validade ou eficácia jurídica.
II - Não tendo o autor demonstrado a invocada simulação, não é questionável o valor de prova plena do contrato de compra e venda celebrado entre as rés, não só quanto às declarações negociais de ambas, mas, também, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real, ou seja, quanto ao valor de prova plena de que as mesmas sejam verdadeiras.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, ambas as decisões recorridas, razão pela qual não importa apreciar o agravo interposto pela apelada C..., nos termos do preceituado pelo artigo 710º, nº 1, do CPC.

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Custas, a cargo do autor.

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