quinta-feira, 19 de março de 2009

Perguntas e Respostas

Mantém-se princípio das 40 horasA flexibilidade de horários e a eliminação de alguns passos do processo de despedimento foram alguns dos pontos mais polémicos desta revisão.O princípio das 40 horas foi mantido. Empresa e trabalhador podem acordar que, durante um período, o tempo de trabalho diário ascenda às 10 horas ou diminua para seis horas. Isto desde que a média semanal não ultrapasse o horário legislado.Para os contratos individuais, os horários podem ser concentrados em quatro dias da semana, enquanto que os contratos colectivos podem ir mais longe, desde que haja duas folgas semanais consecutivas.Bancos de horas permitidos e fim das horas extraordináriasÉ no âmbito do contrato colectivo de trabalho que são permitidos os bancos de horas, cuja proposta final fixou num máximo de 200 horas anuais.Na prática, este instrumento pode terminar com as horas extraordinárias, o que agrada às confederações patronais mas não aos sindicatos.Nota de culpa ao trabalhador para que seja despedidoEm relação ao processo de despedimento, o Código prevê que a entidade patronal continue a ter de fundamentar as causas e enviar uma «nota de culpa» ao trabalhador, mas durante o processo disciplinar só ouve as testemunhas indicadas pelo trabalhador se assim o entender (excepto no caso das grávidas ou trabalhadores em licença parental).Os erros processuais perdem relevância desde que se prove a justa causa de despedimento e não obrigam à reintegração do trabalhador.O trabalhador vê reduzido o prazo para impugnar a decisão de um ano para dois meses mas, enquanto no regime anterior tinha de entregar uma acção que requeria advogado, passa a bastar um requerimento.Nos contratos colectivos que tenham a cláusula segundo a qual só podem caducar se forem substituídos por outro, estes caducam seis anos e meio após a sua publicação integral no Boletim de Trabalho e Emprego.Caso tal aconteça, é criado um mecanismo que obriga as partes a negociar.Novidade no período experimentalO período experimental de trabalho é alargado de três para seis meses para todos os trabalhadores.No entanto, a renúncia do contrato após quatro meses do período experimental fica sujeito a um aviso prévio de 15 dias.Caso as empresas não respeitem o aviso, terão de pagar ao trabalhador o vencimento correspondente ao número de dias do aviso em falta.A nova legislação alarga os dias de assistência à família para um total de 60 por ano.Os trabalhadores passam a ter direito a 30 dias de faltas justificadas para assistirem filhos menores de 12 anos e, pela primeira vez, 15 dias para assistência a descendentes maiores de 12 anos. Terão ainda 15 dias para apoio a cônjuges, pais e irmãos.Perguntas & Respostas1 - Despedir um trabalhador será mais fácil?À partida, todo o processo de despedimento ficará mais simples, mas o impacto dessa simplificação na facilidade de despedir dependerá do que a prática ditar. Por um lado, eliminam-se alguns passos do processo disciplinar, tornando-o mais rápido, e reduzem-se os prazos para o trabalhador contestar o despedimento em tribunal. Mas, por outro, facilita-se o acesso dos trabalhadores aos tribunais. O risco é que as empresas olhem para as medidas de simplificação como uma forma de aliviar as causas de despedimento (que se mantêm) e avancem para despedimentos ilícitos.As razões que justificam o despedimento do trabalhador mantêm-se no novo Código do Trabalho, mas haverá alterações significativas ao nível dos prazos e dos passos a seguir para despedir um trabalhador. A entidade patronal continua a ter que fundamentar as causas e enviar uma "nota de culpa" ao trabalhador, mas durante o processo disciplinar (interno) só ouve as testemunhas indicadas pelo trabalhador se assim o entender (excepto no caso das grávidas ou trabalhadores em licença parental). Além disso, o processo disciplinar passa a prescrever no final de um ano. Ou seja, depois de iniciado o processo disciplinar, o trabalhador tem que ser notificado da decisão no prazo de um ano, caso contrário não se lhe pode aplicar a sanção. Depois de ser notificado da decisão de despedimento, o trabalhador passa a ter dois meses para a contestar em tribunal, bastando para isso entregar um requerimento, uma vez que todas as provas têm que ser apresentadas pela empresa, outra das inovações do Código. Até agora, o prazo para impugnar era de um ano, mas o trabalhador tinha que entregar uma acção (que requeria advogado). No caso de despedimento colectivo o prazo para impugnar continua a ser de seis meses contados a partir da cessação do contrato. Os erros processuais perdem relevância desde que se prove a justa causa de despedimento, e não obrigam a reintegrar o trabalhador, como até aqui.2 - Terei mais tempo para dar apoio à família?Ao todo, os trabalhadores passam a ter direito a 60 dias de faltas justificadas por ano para darem assistência à família, quando agora o limite é de 45 dias por ano. Uma das inovações mais importantes introduzidas na nova lei é a possibilidade dos avós poderem faltar para darem assistência aos netos, em vez dos pais. Os trabalhadores passam também a ter direito a 30 dias para assistirem filhos menores de 12 anos, 15 dias para apoiarem os cônjuges, pais e irmãos, em caso de doença ou acidente, e mais 15 dias para assistirem filhos com mais de 12 anos.O número de faltas justificadas para assistência à família é aumentado, assim como as situações em que isso pode acontecer. A partir de Janeiro de 2009, cada trabalhador terá direito a faltar 60 dias por ano para dar assistência a filhos, cônjuges, pais e irmãos, em caso de doença ou acidente, quando no Código em vigor apenas tinham direito a 45 dias. Além disso, os trabalhadores cujo cônjuge ou pessoa a viver em união de facto tenha doença crónica ou deficiência têm direito a mais 15 dias de faltas justificadas para lhes prestar apoio.Na prática, os trabalhadores passam a ter direito a 30 dias anuais para prestarem assistência aos filhos menores – mas o limite de idade passa dos 10 para os 12 anos –, mais 15 dias para darem apoio aos filhos maiores de 12 anos (uma inovação do novo Código do Trabalho) e ainda 15 dias no caso de se tratar do cônjuge, pais ou irmãos, a que acrescem 15 dias no caso de doença crónica ou deficiência do cônjuge ou pessoa a viver em união de facto. Na lei em vigor o trabalhador tinha 15 dias para assistir a filhos maiores de 10 anos, pais ou cônjuge. A nova lei abre ainda a porta a que os avós possam faltar ao trabalho para cuidar dos netos em casos urgentes, em substituição dos pais, dispondo para isso de 30 dias. Na lei que ainda está em vigor, os avós apenas podiam faltar para prestar apoio a um neto que fosse filho de um adolescente.3 - A licença parental será alargada?A nova lei incentiva a partilha da licença parental entre o pai e a mãe e alarga a sua duração até um ano. A aplicação destas medidas vai depender de diversos factores, nomeadamente da decisão da partilha da licença, da flexibilidade dos empregadores, que ficam sem o trabalhador durante mais tempo, e do nível salarial dos próprios trabalhadores.O pai e a mãe têm direito a uma licença parental inicial de quatro ou cinco meses (pagos a 100%) após o nascimento da criança, mas, se decidirem partilhar a licença, a duração estende-se até aos seis meses (pagos a 80%). Isto significa que a mãe pode decidir ficar em casa cinco meses e o pai um, por exemplo. Passado este período, os progenitores têm ainda direito a mais três meses cada, mas, neste caso, apenas receberão 25% da remuneração bruta, o que poderá afastar os trabalhadores de mais baixos rendimentos. No caso de adopção de menores de 15 anos, os pais têm precisamente os mesmos direitos e a licença é acrescida de 30 dias no caso da adopções de mais de uma criança. Até aqui, a duração máxima da licença era de cinco meses, pagos a 80%.4 - Posso ficar mais tempo à experiência?Tudo dependerá da situação concreta. Um trabalhador não qualificado contratado para o quadro de uma empresa tinha de cumprir três meses de período experimental e passará a ter de ficar seis. Já os trabalhadores que passam ao quadro depois de vários contratos precários com a mesma empresa poderão ver reduzido ou eliminado o período de experiência.Para a generalidade dos trabalhadores contratados sem termo, o período experimental passa de três para seis meses. A grande novidade introduzida é que este período pode ser reduzido ou eliminado em função da duração de contratos a termo, temporário ou de prestação de serviços com a mesma empresa. Esta alteração vai beneficiar essencialmente os trabalhadores que já estão no mercado de trabalho com contratos precários e que passem ao quadro. Um dos riscos do aumento do período experimental é a sua utilização em substituição dos contratos a prazo, uma vez que a empresa pode cessar o contrato sem invocar justa causa. Para tentar conter isso e no caso de já terem decorrido quatro meses da experiência, o patrão é obrigado a avisar o trabalhador 15 dias antes de revogar o contrato.5 - As empresas poderão alterar os horários?Embora a duração máxima do tempo de trabalho não sofra qualquer alteração, as empresas podem, dentro de determinados limites, alargar o período normal de trabalho e propor ao funcionário que trabalhe apenas alguns dias por semana. Embora se reforce a adaptabilidade individual, a lei cria alguns incentivos para que sindicatos e patrões negoceiem contratos colectivos. Só neste âmbito será permitido criar os bancos de horas, uma bolsa de tempo que tornará mais barato o trabalho extraordinário.A lei abre a porta à flexibilidade de horários de trabalho dentro de certos limites. Desde logo, o patrão e o trabalhador podem acordar que, durante um determinado período, o tempo de trabalho é medido em termos médios e os horários podem ser aumentados até às 10 horas diárias ou reduzidos para as seis horas. Os trabalhadores têm 14 dias para dizerem se concordam e, se 75% aceitar a proposta, o regime aplica-se a todos. Nos contratos colectivos pode ir-se mais além e alargar o período normal de trabalho até às 12 horas diárias, desde que a média em dois meses não exceda as 50 horas semanais. Neste caso, se 60% dos trabalhadores aceitarem, a medida aplica-se também a todos. Por acordo individual, a empresa e o trabalhador podem decidir concentrar os horários em apenas quatro dias da semana, ou até menos, mas mais uma vez os contratos colectivos podem ir mais longe e concentrar o horário em menos dias, desde que sejam seguidos de dois dias de descanso.Cria-se ainda a possibilidade de se criarem bancos de horas nas empresas, mas isso apenas pode acontecer se os contratos colectivos assim decidirem. Estes bancos de horas não podem exceder as 200 horas anuais e tanto podem ser usadas pelos trabalhadores quando precisam de faltar, por exemplo, ou pela empresa quando tem picos de produção. O trabalho prestado não é considerado extraordinário e pode ser compensado em folgas ou em dinheiro.6 - Haverá mais restrições aos contratos a prazo?O cerco à contratação a termo e o combate aos falsos recibos verdes é das alterações mais elogiadas do novo Código do Trabalho. A ideia é restringir a contratação a termo e os recibos verdes apenas às situações previstas na lei e evitar o uso abusivo desta forma de contratação que, até agora, saía mais barata às empresas. No próximo ano, os contratos a prazo terão custos agravados ao nível da taxa social única a pagar pelas empresas, enquanto que os trabalhadores do quadro sairão mais baratos.Desde logo, o novo Código do Trabalho altera a noção de contrato de trabalho para facilitar a identificação dos falsos recibos verdes e penaliza as empresas que recorrerem a este expediente: em caso de reincidência perdem os subsídios e benefícios concedidos pelo Estado e poderão ver suspensa a actividade por dois anos. Por outro lado, a proposta que será aprovada esta semana alarga as restrições da contratação a termo: além do posto de trabalho não poder ter sido ocupado anteriormente por trabalhador a termo, acrescentam-se ainda os contratos temporários ou de prestação de serviço com o mesmo empregador ou sociedade de que faça parte, além das situações em que há partilha de serviços. A duração máxima dos contratos a prazo é ainda reduzida e passa dos actuais seis para os três anos, sendo que este limite se aplica também aos contratos temporários ou de prestação de serviços celebrados com o mesmo empregador. Adicionalmente, restringe-se o uso de contratos a termo no lançamento de novas actividades ou na abertura de uma nova empresa. Esta possibilidade apenas é permitida às empresas com menos de 750 trabalhadores. Prevê-se ainda uma alteração do Código Contributivo para penalizar em 3% as contribuições pagas pela empresa sobre os trabalhadores a termo, reduz-se a taxa em 1% para os trabalhadores do quadro e cria-se uma taxa de 5% sobre os recibos verdes.7 - As empresas podem mudar a função do trabalhador?As empresas continuam a poder transferir o trabalhador de local de trabalho e de funções e podem ainda chegar a acordar com o trabalhador as situações em que isso pode acontecer. A grande novidade é que estes acordos caducam ao fim de dois anos caso não sejam accionados pelo empregador.Sempre que seja do interesse da empresa e isso não implique "prejuízo sério para o trabalhador", a entidade patronal pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho ou mudar as suas funções por um período máximo de seis meses.Adicionalmente, os contratos podem ainda prever outras situações e motivos que alargam ou restringem a mobilidade funcional e geográfica dos trabalhadores.Porém, introduz-se uma novidade: se o empregador não accionar estes mecanismos no prazo de dois anos, eles caducam. Desta forma, pretende-se restringir a validade de cláusulas que muitas vezes constam dos contratos contra a vontade do trabalhador e que nunca chegam a ser utilizadas pela entidade patronal.8 - O poder dos sindicatos sai reforçado?A nova lei abre várias frentes para que haja negociação entre patrões e sindicatos, principalmente na definição dos horários de trabalho. O problema é que ao mesmo tempo se abre a porta a que os trabalhadores não sindicalizados adiram aos contratos colectivos, o que poderá enfraquecer o papel dos sindicatos.A medida já é aplicada em algumas empresas, mas o actual Código do Trabalho nada diz sobre ela. A partir de Janeiro de 2009, a nova lei vai dizer expressamente que os trabalhadores que não sejam sindicalizados poderão escolher o contrato colectivo que querem que lhes seja aplicado e mesmo que ele caduque continuam a ser abrangidos por algumas das suas normas. Esta possibilidade pode reduzir o número de trabalhadores que se sindicalizam, uma vez que podem usufruir dos benefícios dos contratos negociados pelo sindicato sem fazerem parte dele. A caducidade dos contratos e a criação de novos mecanismos de arbitragem para resolver impasses negociais são medidas que o Governo considera "amigas da negociação", mas os sindicatos discordam.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Segredo de Justiça na fase de Inquérito

Acórdão n.º 428/2008
Processo n.º 520/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres



Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,


1. Relatório
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14 de Abril de 2008, foi concedido parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos A. e B. contra o despacho do Tribunal Judi­cial de Guimarães, de 14 de Janeiro de 2008, que, nos termos do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, prorrogara a manutenção do segredo de justiça até ao dia 4 de Outubro de 2008, por ser esse “o prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação”. Nesse acórdão, o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que quando o n.º 6 do artigo 89.º do CPP (“Findos os prazos previstos no artigo 276.º [os prazos de duração máxima do inquérito], o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorro­gado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º [terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente violenta e criminalidade altamente organizada], e por um prazo objectivamente indispensável à conclu­são da investigação”) permite nova prorrogação do prazo, por uma só vez, esta prorrogação, tal como a primeira, também tem a duração máxima de três meses. Embora esta disposição, introduzida pela Lei n.º 48/2007, só se dirija ao futuro, não colocando em causa os actos pra­ticados em sede da lei antiga (designadamente, o despacho de 10 de Outubro de 2007, que adiara o acesso pelo período de três meses, que terminou em 10 de Janeiro de 2008), con­clui a Relação que a nova prorrogação do prazo tinha a duração máxima de três meses e ter­minara já em 10 de Abril de 2008.
Em 23 de Abril de 2008, o arguido A. e outros vieram requerer a consulta de todos os elementos do processo.
Por despacho de 2 de Maio de 2008, a magistrada do Ministério Público titular do inquérito facultou a consulta do processo através de acesso a cópia certificada do mesmo, da qual foram retirados “todos os elementos relativos a informações bancárias e fiscais e bem assim despachos cuja execução esteja em curso”.
Os referidos arguidos, em 12 de Maio de 2008, vieram requerer o acesso a todos os elementos do processo.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho, de 21 de Maio de 2008, da magistrada do Ministério Público titular do inquérito:

“Requerimento de fls. 10 113, do mandatário dos arguidos A. e B.:
Para complemento da certidão já existente, para consulta nos termos do n.ºs 3 e 6 do artigo 89.º do CPP, extraia cópia certificada de todos os elementos do processo a partir de fls. 10 014 até ao presente despacho, com excepção dos documentos bancários de fls. 10 042 a 10 094 (os quais respeitam a pessoa diferente daqueles arguidos), por, nesta parte, nos opormos, nos termos do des­pacho que segue.
*
O mandatário dos arguidos A. e B. veio requerer a consulta de todos os elementos do processo, sem qualquer limitação, designadamente quanto às informações ban­cárias e fiscais recusadas pelo Ministério Público, por entender que a lei é clara no sentido de que «... o arguido ... podem consultar todos os elementos de pro­cesso que se encontre em segredo de justiça ...».
Está assim em causa a interpretação do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, ao estabelecer que «Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça ...».
Ora, não obstante o referido teor do artigo 89.º, n.º 6, do CPP, na parte em que refere que o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do processo, este preceito não pode deixar de ser conjugado com preceitos especiais que, relativamente a específicos elementos dos autos, impe­dem que sejam consultados, designadamente antes do encerramento do inqué­rito.
Encontram‑se nesta situação os elementos que caem na previsão do n.º 7 do artigo 86.º, que dispõe que «A publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova» e acrescenta que «a autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito ...».
É ainda o caso dos suportes técnicos das conversações e comunicações telefónicas interceptadas, cujo acesso, como estabelece o n.º 8 do artigo 188.º do CPP, só poderá ter lugar a partir do encerramento do inquérito.
No que aos documentos bancários respeita, estão abrangidos por segredo profissional, conforme dispõe o artigo 78.º do Regime Geral das Ins­tituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGISF), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na redacção do Decreto‑Lei n.º 1/2008, de 3 de Janeiro, designadamente quanto aos «nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias», sendo a violação do segredo punível nos termos do Código Penal (artigo 84.º do RGISF).
O mesmo se diga quanto aos elementos sujeitos a sigilo fiscal, con­forme o disposto no artigo 64.º, n.ºs 1 e 3, da Lei Geral Tributária (LGT).
É certo que, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, o segredo bancário e fiscal cede se houver razões para crer que «as respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade», mediante despacho da autoridade judiciária, o que efectivamente aconteceu nos autos relativa­mente aos documentos em causa, acima referidos.
No entanto, dispõe o artigo 3.º da mesma lei, no seu n.º 4, que, após o for­necimento dos elementos pelas instituições bancárias, «os documentos que não interessem ao processo são devolvidos à entidade que os forneceu ou des­truídos, quando não se trate de originais, lavrando‑se o respectivo auto», em homenagem ao princípio da necessidade e da proporcionalidade no que respeita à utilização processual de dados sujeitos a sigilo bancário.
Ora, o relevo de tais documentos para o processo e a respectiva decisão sobre a sua utilização corno prova ou, pelo contrário, a sua devolução ou des­truição, só poderá ter lugar após a realização da respectiva análise pericial, pelo que a revelação de tais documentos, nesta fase, poderá implicar a violação daqueles preceitos – artigos 78.º e 84.º do RGISF.
Aliás, uma interpretação normativa do n.º 6 do artigo 89.º do CPP no sen­tido de ser permitida e não poder ser recusada ao arguido, antes do encer­ramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irres­trita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional nos termos do RGISF e da LGT, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e sem que se demonstre a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido, é violadora dos princípios ínsitos nos artigos 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da República Portuguesa.
Em suma, não estando ainda definido o relevo dos elementos supra referi­dos para a prova, ou a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido, que aliás não é invocada pelo requerente, entende‑se que o disposto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP (que se reporta por identidade de razões ao arguido, assis­tente e ofendido), não é fundamento suficiente para ser permitido o acesso àqueles elementos bancários e fiscais, neste momento, pelo que deve ser inde­ferido, nesta parte, o requerido.
Considerando o disposto no artigo 89.º, n.º 2, do CPP e face à oposição à consulta, deduzida pelo Ministério Público no que respeita aos elementos bancários e fiscais, apresente os autos à Senhora Juiz do Tribunal de Guima­rães para decisão.”

Conclusos os autos à Juíza do Tribunal Judicial de Guimarães, esta proferiu, em 26 de Maio de 2008, o seguinte despacho:

“A fls. 10 113, o Ex.mo Senhor Mandatário dos arguidos A. e B. veio requerer a con­sulta da totalidade dos autos.
A fls. 10 115, o Ministério Público veio manifestar a sua discordância relativamente ao peticionado, apresentando as razões de facto e de direito que nos escusamos a reproduzir.
Nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, cumpre decidir.
Estabelece o disposto no artigo 86.º, n.º 6, alínea c), do CPP que a publici­dade do processo implica a consulta do autos e obtenção de cópias de quaisquer partes do processo, com as limitações estabelecidas nos n.ºs 7 e 8 do mesmo normativo.
Assim, inexistindo qualquer limitação legalmente estabelecida ao peticio­nado pelos arguidos, nomeadamente a certos elementos do processo, determina‑se, como já determinou o Venerando Tribunal da Relação de Gui­marães, que todos os intervenientes processuais tenham acesso à totalidade dos autos, caso assim o pretendam.”

Notificada deste despacho, a magistrada do Ministério Público, uma vez que o mesmo omitia qualquer menção ao n.º 6 do artigo 89.º do CPP, veio requerer a sua aclaração, consignando:

“É assim a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do CPP que está em causa, no sentido de saber se a consulta do processo em segredo de justiça aí prevista (para o arguido, o assistente e ofendido, mas não para outros intervenientes processuais) é irrestrita, sobrepondo‑se designadamente às limitações que pos­sam decorrer da necessidade de preservação da reserva da vida privada que mesmo no caso de processo público a lei contempla no artigo 86.º, n.º 7, do CPP e de qualquer forma a Constituição da República protege.
Aliás, mesmo que se estivesse perante um processo público, a que fosse aplicável o disposto no n.º 6, alínea c), do artigo 86.º do CPP (referido no des­pacho de fls. 10 155), na sequência do disposto no artigo 89.º, n.º 6, do CPP, uma interpretação normativa deste artigo 86.º, n.º 6, alínea c), do CPP, no sen­tido de ser permitida a todos os intervenientes processuais e não poder ser recusada, antes do encerramento do inquérito, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida pri­vada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional nos termos do RGISF e da LGT, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º do Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenho sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, é violadora dos princípios ínsitos nos artigos 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da Repú­blica Portuguesa.
Perante o exposto e a invocado omissão, requer‑se a aclaração do despa­cho de fls. 10 155, no sentido de esclarecer qual a interpretação dada ao referido preceito do artigo 89.º, n.º 6, do CPP, ao abrigo do qual foi requerida o consulta dos elementos por parte dos arguidos.”

Este pedido foi indeferido por despacho judicial de 3 de Junho de 2008, do seguinte teor:

“A fls. 10 187 foi requerido pelo Ministério Público a aclaração do despa­cho por nós proferido a fls. 10 155, nos termos do qual e na esteira do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, entendemos e declaramos que os presentes autos se encontram públicos, pelo que todos os intervenientes processuais poderão ter acesso à totalidade dos mesmos, sem quaisquer restri­ções.
Alega em suma que os elementos bancários e fiscais devem permanecer em segredo de justiça e, por isso, não podem ser consultados, por motivos que assentam no segredo bancário e fiscal estabelecido em legislação especial.
Entendemos, salvo o devido respeito, que o despacho proferido é sufi­cientemente claro e, como tal, nada existe a aclarar, já que o pretendido pela requerente mais não é do que nova decisão sobre a matéria que foi já decidida.
Acrescenta‑se apenas, por um lado, que o segredo de justiça, tal como regulado nos artigos 86.º e seguintes do CPP, se apresenta em duas vertentes, o interno e o externo.
No caso vertente, pese embora o segredo externo se mantenha, face ao preceituado no artigo 88.º do CPP, deixou de existir o segredo interno, atento o que foi decidido pelo Tribunal da Relação.
O que implica, como se decidiu no despacho ora questionado, o acesso a todos os elementos de prova constantes do processo por todos os sujeitos processuais, isto, sem embargo do dever de segredo de justiça a que os mesmos ficam também sujeitos.
Por outro lado, importa vincar que, a partir do momento em que os ele­mentos bancários e fiscais são juntos ao processo, a questão do sigilo bancário e fiscal, tal como se perfila na legislação apontada, não se coloca, já que o acesso a tais elementos e sua junção aos autos resulta precisamente da circuns­tância de os mesmos não estarem abrangidos por tais sigilos, ou então, os mesmos terem sido quebrados, tendo em conta o preceituado no artigo 135.º e seguintes do CPP.
É certo que o acesso por parte dos intervenientes processuais à totali­dade dos autos poderá contender com o sucesso da investigação e criar alguns constrangimentos como os referidos.
Todavia, os operadores judiciários têm que se conformar com estas «vicis­situdes» ou, caso entendam, interpor o competente recurso para as ins­tâncias adequadas.”

Veio então a referida magistrada do Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Or­gani­za­ção, Funcio­na­mento e Pro­cesso do Tri­bunal Constitucional, apro­vada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novem­bro, e alte­rada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fe­ve­reiro (LTC), contra o despacho de 26 de Maio de 2008, complementado pelo despacho de 3 de Junho de 2008, pre­tendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade do conjunto normativo formado pelos arti­gos 86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de ser per­mitida e não poder ser recusada, a todos os intervenientes processuais, designadamente ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profis­sional nos termos do Regime Geral dos Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e da Lei Geral Tributária, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido con­cluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como meio de prova ou, pelo contrá­rio, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, por violação dos princípios ínsitos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da República Portu­guesa”.

O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:

“1. O conjunto normativo formado pelos artigos 86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de ser per­mitido e não poder ser recusado, ao arguido, antes do encerramento do inqué­rito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida pri­vada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, e sem que se demonstre a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido, é inconstitucional porque violadora dos artigos 2.º, 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 2, e 202.º da Constituição.
2. Essa inconstitucionalidade sai reforçada se atendermos às particularida­des do caso em que as normas foram aplicadas, já que, tendo ocor­rido a prorrogação do prazo para acesso aos autos por um determinado prazo, ele é abruptamente encurtado na sequência de decisão da Relação que conce­deu provimento a recurso interposto por alguns arguidos daquela decisão de prorrogação.
3. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”

Os recorridos não apresentaram contra‑alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação
2.1. A regulação do segredo de justiça em processo penal – quer na vertente interna, respeitando aos participantes processuais directamente envolvidos na concreta rela­ção processual, quer na vertente externa, reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual – convoca, com particular acuidade, “a tarefa de concordância prá­tica das finalidades, irremediavelmente conflituantes, apontadas ao processo penal: a reali­zação da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma vio­lada” (Maria João Antunes, “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção”, em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 1237‑1268).
Num processo penal constitucionalmente conformado, como o português, “numa estrutura acusatória integrada pelo princípio da investigação”, a necessidade de har­monização das apontadas finalidades justifica soluções diferenciadas consoante as fases por que se desenrola o processo, tendo em conta o diferente peso relativo que lhes deve ser atri­buído em cada uma delas, compreendendo‑se uma evolução em que o predomínio do princí­pio do segredo sobre o princípio da publicidade, típico da fase preliminar da investigação, vá gradualmente evoluindo para o predomínio do princípio da publicidade, típico da fase da audiência de julgamento, “sem perder de vista que em cada um destes momentos processuais vale sempre, mas com intensidade diferente, o princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. “Assim – refere a mesma autora (estudo citado, p. 1244), tendo por referência a redacção do Código de Processo Penal de 1987 emer­gente da revisão de 1998 –, o princípio da publicidade tem a sua expansão máxima, é dizer as limitações mínimas, na fase de julgamento (artigos 206.º da Constituição da República Por­tuguesa – CRP – e 86.º, n.º 1, do CPP), podendo concluir‑se pela derrogação deste princípio, embora com limites, na fase de inquérito (artigos 20.º, n.º 3, da CRP, e 86.º, n.ºs 1 e 4, e 89.º, n.º 2, do CPP)”, “[d]ependendo a maior ou menor publicidade da fase de instrução da cir­cunstância de ter sido (ou não) requerida apenas pelo arguido e de este não declarar (ou declarar) que se opõe à publicidade (artigo 86.º, n.º 1, parte final, do CPP)”.
Porém, nem num extremo nem no outro do iter processual, o princípio domi­nante, seja ele o do segredo ou o da publicidade, tinha valor absoluto. Se, tendo em conta as finalidades do julgamento, se justificava a consagração do princípio da publicidade nessa fase, até porque nela o princípio da presunção de inocência coexiste com uma acusação e um des­pacho de pronúncia, no entanto, mesmo aí, tal princípio “sofre as limitações que sejam neces­sárias para salvaguardar certos direitos das pessoas e para garantir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, por via do normal funcionamento dos tribunais”: assim, por exemplo, a publicidade dos actos processuais que integravam a fase do julgamento não abrangia os dados relativos à vida privada que não constituíssem meios de prova (artigo 86.º, n.º 3); o juiz podia restringir a livre assistência do público aos actos processuais ou determinar que o acto, ou parte dele, decorresse com exclusão da publicidade, sempre que tal fosse necessário para evitar a produção de grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do acto (artigo 87.º, n.ºs 1 e 2), sendo a exclusão da publicidade a regra nos processos por crime sexual que tivessem por ofendido um menor de 16 anos (artigo 87.º, n.º 3).
Quanto à fase da instrução, a opção originária do CPP de 1987 de a subordinar, em regra, ao princípio do segredo (o processo só era público a partir da decisão instrutória ou até ao momento em que a instrução já não podia ser requerida – n.º 1 do artigo 86.º, na versão inicial), foi atenuada, na revisão de 1998, com a permissão da publicidade do processo se a instrução tivesse sido requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarasse que se opunha à publicidade. Tratando‑se de fase de controlo judicial da decisão final tomada no inquérito, em que, por isso, a manutenção do segredo já não era exigida por preocupações de eficácia da investigação, entendeu‑se que, se a instrução tivesse sido requerida pelo assis­tente (ou pelo assistente e pelo arguido), o que pressupunha que já fora proferida uma decisão de não acusação (pelo menos parcial) do Ministério Público, a preservação do princípio da presunção de inocência do arguido legitimava a continuação do segredo; diversamente, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido, o que pressupunha a dedução de uma acusação, compreender‑se‑ia que lhe fosse facultada a opção entre a publicidade (se entendesse que ela propiciaria mais eficácia à sua defesa, que compensasse a perda de privacidade) e a continua­ção do segredo (se o juízo de ponderação levasse a resultado oposto).
Quanto à fase do inquérito, sempre foi entendimento que nela se impunha a derrogação do princípio da publicidade, “importando salientar que esta derrogação está até constitucionalmente legitimada, a partir das alterações introduzidas pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, uma vez que o artigo 20.º, n.º 3, da CRP passou a prever que «a lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça»”, como salienta Maria João Antunes (estudo citado, p. 1244), que acrescenta:

“Justifica‑se aquela derrogação tendo em conta que o inquérito com­preende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a submissão (ou não) da causa a julgamento, sendo praticados os actos e assegurados os meios de prova neces­sários à realização destas finalidades (artigos 262.º, n.º 1, e 267.º do CPP); que esta é uma fase cuja abertura depende da mera aquisição da notícia do crime (artigos 241.º e 262.º, n.º 2, do CPP); e tendo, ainda, em conta que é só no momento do encerramento do inquérito que é feita uma avaliação no sentido de saber se foram recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, se foi recolhida prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento ou se não foi possível obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 276.º, 277.º e 283.º do CPP). Numa palavra, esta é uma fase em que para a realização da justiça e a descoberta da verdade material importa assegurar uma investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada, ou mesmo irreme­diavelmente prejudicada, por factores exteriores à administração da justiça penal, ao mesmo tempo que importa tutelar de forma efectiva a presunção de inocência do arguido, o que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação (artigos 26.º, n.º 1, da CRP e 180.º do Código Penal), numa fase processual onde vale, por excelência, o mandamento constitucional de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sen­tença de condenação (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). No inquérito, o princípio da publicidade é derrogado por ser outra a forma como se procede à concordância prática das finalidades processuais conflituantes e por ser também outra a forma como se concretiza a ponderação dos direitos conflituantes que engros­sam o catálogo dos direitos dos cidadãos que cabe ao processo penal salva­guardar. Uma outra forma que é ditada, num caso, pelo êxito da investigação da notícia do crime, especialmente no que diz respeito à aquisição e à conser­vação da prova e, noutro, por o princípio da presunção de inocência do arguido valer em termos absolutos.”

Também Frederico de Lacerda da Costa Pinto (“Segredo de justiça e acesso ao processo”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, pp. 67‑98), após demonstrar que a natureza tendencialmente secreta da fase do inquérito e a natureza tendencialmente pública da fase do julgamento se compreende em função dos propósitos e das finalidades de cada uma dessas fases, salienta que “a vigência do segredo de justiça nas fases preliminares do processo penal é plurisignificativa no plano axiológico: trata‑se, por um lado, de um mecanismo destinado a garantir a efectividade social do princípio da presunção de inocência do arguido, durante fases processuais que ainda estão cronologicamente distantes do julgamento, julgamento esse que pode, inclusiva­mente, nem vir a ter lugar por força dum arquivamento do processo (artigo 277.º) ou duma não pronúncia (artigo 308.º, n.º 1, in fine); noutro plano, é uma forma de garantir condições de eficiência da investigação e de preservação de possíveis meios de prova, quer a prova obtida quer a eventual prova a obter; finalmente, como variante específica deste último aspecto, o segredo de justiça pode assumir igualmente uma função de garantia para pessoas que intervêm no processo – em particular as vítimas e as testemunhas – que, de outra forma, poderiam ficar numa fase preliminar do processo expostas a retaliações e vinganças de arguidos ou pessoas que lhes sejam próximas”.
O carácter predominantemente secreto da fase do inquérito não obstava, porém, como os citados autores sublinham e a jurisprudência deste Tribunal proclamou, ao acesso do arguido aos elementos de prova sempre que tal acesso se mostrasse necessário para a eficácia da defesa dos seus direitos nessa fase, designadamente para contraditar – e, sendo caso, impugnar – a necessidade da aplicação de medidas de coacção, nomeadamente a sujeição a prisão preventiva. No Acórdão n.º 416/2003, retomando doutrina já expressa no Acórdão n.º 121/97, teve‑se por constitucionalmente intolerável que se consi­derasse sempre e em quais­quer circunstâncias interdito o acesso aos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a pro­posta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, com alegação de potencial prejuízo para a investiga­ção, protegida pelo segredo de justiça, sem que se procedesse, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação pudesse causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação pudesse causar à defesa do arguido.

2.2. Foi neste quadro legal, jurisprudencial e doutrinal (cf., ainda, Maria da Assunção A. Esteves, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça”, em O Processo Penal em Revisão, Lisboa, 1998, pp. 123‑131; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “O segredo de justiça em processo penal”, em Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa‑Hora, Lisboa, 1995, pp. 223‑234; Paulo Dá Mesquita, “O segredo do inquérito penal – Uma leitura jurídico‑constitucional”, Direito e Justiça, ano XIV, tomo 2, 2000, pp. 47‑134; Germano Marques da Silva, “O segredo de justiça – Perspectiva político‑jurídica da sua relevância no combate à criminalidade, na garantia dos direitos dos cidadãos e no prestígio das instituições judiciárias”, e Henrique Pavão, “O regime do segredo de justiça no inquérito na sua vertente interna”, ambos em Conselho Superior da Magistratura, Balanço da Reforma da Acção Executiva – Segredo de Justiça e Dever de Reserva, Coimbra, 2005, pp. 75‑113 e 115‑128, respectivamente) que, no âmbito de uma anunciada revisão do sistema processual penal, em que um dos aspectos a reformular seria o relativo ao regime do segredo de justiça, se iniciaram os trabalhos que haveriam de culminar na revisão do CPP operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (cf. Agostinho Torres, “Segredo de justiça, sigilo profissional e protecção das fontes de infor­mação – Alguns aspectos de uma perspectiva jurisdicional”, Polícia e Justiça – Revista do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, III Série, n.º 5, Janeiro‑Junho 2005, pp. 215‑242; Jorge Ribeiro de Faria, “Publicidade e justiça criminal”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano IV, 2007, pp. 125‑153; Mário Ferreira Monte, “O segredo de justiça: algumas questões postas a propósito da anunciada alteração do seu regime”, e André Lamas Leite, “Segredo de justiça interno, inquérito, arguido e seus direitos de defesa”, ambos publicados em MaiaJurídica, ano IV, n.º 1, Janeiro‑Junho 2006, respectivamente a pp. 17‑34 e 35‑52, e o último publicado também em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 4, Outubro‑Dezembro 2006, pp. 539‑573; Maria Clara Oliveira, “Segredo de justiça – o mal amado!”, e Manuel Simas Santos, “O segredo de justiça”, ambos publicados em MaiaJurídica, ano IV, n.º 2, Julho‑Dezembro 2006, respectivamente a pp. 77‑94 e 145‑154).
As referências iniciais ao âmbito da revisão do regime de segredo de justiça e mesmo o Anteprojecto apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal e a Pro­posta de Lei n.º 109/X estavam bem longe do alcance que a reforma, neste ponto, acabou por assumir. Rui Pereira (“A crise do processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro‑Março 2004, pp. 17‑30, em especial pp. 25‑26, e “A reforma do processo penal”, em II Congresso de Processo Penal, Coimbra, 2006, pp. 225‑238, em especial pp. 232‑233) justificava a necessidade de revisão do segredo de justiça “de modo a que se obte­nha uma concordância prática entre a necessidade de preservar a investigação e as garan­tias de defesa”, já que, face aos juízos de inconstitucionalidade da completa denegação ao arguido do acesso aos autos, inviabilizando a impugnação da prisão preventiva, era “desejável que o legislador formule, no mínimo, um critério do qual se infira em que medida deve ser conce­dido, caso a caso, o acesso aos autos em homenagem às garantias de defesa”, acres­centando: “Sem pôr em causa a investigação, deve‑se restringir o âmbito do segredo de jus­tiça, tendo em conta que em determinados processos (por exemplo, relativos a abuso de liberdade de imprensa) ou certos actos processuais (acórdãos proferidos por tribunais supe­riores quanto a matéria de direito) ele não se justifica”, “[e] tão‑pouco se justifica que o segredo se estenda para além da acusação – na instrução, o processo deve tornar‑se público”.
Eram basicamente estes os propósitos enunciados, a este respeito, na “Exposi­ção de motivos” do referido Anteprojecto de Código de Processo Penal apresentado, em Julho de 2006, pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, que estabelecia a regra de que “o processo está sujeito a segredo de justiça até ao termo do prazo para requerer a abertura da instrução, excepto se o Ministério Público determinar a sua publicidade” (n.º 2 do artigo 86.º), o que poderia fazer, “em qualquer momento do inquérito, com a concordância do arguido, quando entender que a cessação do segredo não prejudica a investigação e os direitos dos participantes processuais ou das vítimas” (n.º 3 do artigo 86.º), continuando o processo “sujeito ao segredo de justiça até ao trânsito em julgado da decisão instrutória, se o arguido declarar que se opõe à publicidade” (n.º 4 do artigo 86.º). No que concerne ao “segredo interno”, o n.º 1 do artigo 89.º previa que “durante o inquérito, o arguido, o assis­tente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões, salvo quando o Ministério Público a isso se opuser, por considerar, fundamen­tadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas”.
A Proposta de Lei n.º 109/X (Diário da Assembleia da República (DAR), II Série‑A, n.º 31, de 23 de Dezembro de 2006, pp. 6‑178) mantinha o teor dos n.ºs 2, 3 e 4 (este agora sob o n.º 5) do artigo 86.º e do n.º 1 do artigo 89.º do Anteprojecto, mas passava a pre­ver no novo n.º 4 do artigo 86.º que “no caso de o arguido requerer a publicidade mas o Ministério Público não a determinar, os autos são remetidos ao juiz, que decide, por despa­cho irrecorrível, depois de ouvir o ofendido, se o processo continua sujeito a segredo de jus­tiça ou se torna público”, e, no n.º 2 do artigo 89.º, que “se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos no número anterior, o requerimento é pre­sente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível”.
As restantes iniciativas legislativas apresentadas no âmbito da revisão do pro­cesso penal propunham soluções diversificadas, mas nenhuma preconizava o estabelecimento, como regra, da publicidade do processo na fase do inquérito. O Projecto de Lei n.º 237/X, do PSD (DAR, II Série‑A, n.º 100, de 6 de Abril de 2006, p. 13), previa que o processo, no caso de crimes puníveis com pena de prisão superior a oito anos, era público apenas a partir do encerramento do inquérito, excepto se fosse requerida a abertura de instrução e o arguido declarasse que se opunha à publicidade (n.º 2 do artigo 86.º), regime que seria extensível aos processos por crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos se o juiz, mediante requerimento da vítima, do arguido ou do Ministério Público, assim o entendesse em despa­cho fundamentado (n.º 5 do artigo 86.º); quanto ao segredo interno, o n.º 2 do artigo 89.º pre­via que, se o Ministério Público ainda não houvesse deduzido acusação ou proferido despacho de arquivamento do inquérito, o arguido, o assistente e as partes civis só podiam ter acesso a auto que se encontrasse em segredo de justiça na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir, podendo, nos termos do subsequente n.º 3, o juiz, com a concordância do Ministério Público, do arguido e do assis­tente, permitir que o arguido e o assistente tivessem acesso a todo o auto. O Projecto de Lei n.º 368/X, do CDS‑PP (DAR, II Série‑A, n.º 52, de 9 de Março de 2007, p. 17), mantinha a regra de que o processo só era público a partir da decisão instrutória (ou do momento em que a ins­trução já não pudesse ser requerida) ou, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido, se este, no respectivo requerimento, não declarasse opor‑se à publicidade (artigo 86.º, n.º 1), reproduzindo, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 89.º, o teor dos correspondentes preceitos do Projecto de Lei n.º 237/X. O Projecto de Lei n.º 369/X, do BE (mesmo DAR, p. 34), fazia depender a publicidade do processo da natureza dos crimes em causa: tratando‑se de crimes de natureza particular, o processo era sempre público (artigo 86.º, n.º 1); tratando‑se de crimes de natureza semi‑pública, o processo era público a partir do momento em que fosse deduzida a acusação, podendo, no entanto, no decurso do inquérito, o juiz de instrução, através de des­pacho funda­mentado, ordenar o levantamento do segredo de justiça, quando a publicidade do inquérito não interferisse com a investigação em curso e desde que fossem assegurados todos os direi­tos do arguido e das vítimas (artigo 86.º, n.º 2); tratando‑se de crimes públicos, o pro­cesso era público apenas a partir do momento em que fosse deduzida a acusação. Por último, o Projecto de Lei n.º 370/X, do PCP (mesmo DAR, p. 43) não propunha alterações para o n.º 1 do artigo 86.º então vigente, mas nos n.ºs 2 e 4 do artigo 89.º acolhia preceitos similares aos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 89.º do Projecto de Lei n.º 237/X.
Foi só no decurso na discussão e votação, na especialidade, dessas iniciativas legislativas, a cargo de um grupo de trabalho constituído no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e especificamente na reunião final da Comissão, realizada em 18 de Julho de 2007, que foram apresentadas as propostas de altera­ção aos artigos 86.º e 89.º do CPP que acabariam por ser aprovadas, e que representaram uma alteração radical – para a qual o relatório da referida Comissão (DAR, II Série‑A, n.º 117, de 23 de Julho de 2007, p. 18) não fornece qualquer indicação que permita compreender a sua justificação (Tendo sido requerida a avocação pelo Plenário da votação, na especialidade, do artigo 86.º, cf. a parte correspondente do debate, a pp. 51 a 54, e da votação, a p. 56, do DAR, I Série, n.º 108, de 20 de Julho de 2007).
Como salienta Pedro Maria Godinho Vaz Patto (“O regime do segredo de justiça no Código de Processo Penal revisto”, Revista do CEJ, n.º 9, 2008, pp. 43‑67, no prelo), a versão que veio a ser aprovada diferencia‑se das constantes dos referidos Antepro­jecto e Proposta de Lei:

“A regra passa a ser a publicidade do processo mesmo na fase de inqué­rito. A regra do carácter secreto do inquérito, consignada no artigo 86.º, n.º 2, da Proposta de Lei e do Anteprojecto desapareceu. Esse carácter secreto passa a ser a excepção. O Ministério Público pode afastar essa regra, mas, para tal, carece da concordância do juiz de instrução. Estatui o n.º 3 do artigo 86.º: «Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplica­ção ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas». Neste caso, o Ministério Público poderá determinar, posterior­mente e em qualquer momento do inquérito, o levantamento do segredo de justiça, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido (n.º 4 do mesmo artigo). Esse levantamento também pode ser decidido pelo juiz de instrução, mediante despacho irrecorrível, no caso de o arguido, o assistente ou o ofendido o requererem mesmo contra a posição do Ministério Público (n.º 5 do mesmo artigo). Assim, por um lado, passa a ser possível, ao contrário do que decorreria do regime do Anteprojecto e da Pro­posta de Lei, determinar a publicidade do processo na fase de inquérito mesmo contra a vontade do arguido: se o Ministério Público não requerer a sujeição do mesmo a segredo de justiça (não é essa a regra e pode entender que os direitos dos sujeitos processuais não justificam o afastamento dessa regra) e se o juiz não deferir o requerimento do arguido nesse sentido. Por outro lado, também pode suceder (o que não sucederia no regime decorrente do Antepro­jecto e da Pro­posta de Lei) que o processo se mantenha público e não fique sujeito ao regime de segredo de justiça contra a posição assumida pelo Ministé­rio Público e mesmo que não haja requerimento do arguido (ou também do assistente ou do ofendido) nesse sentido. Tal sucederá se o juiz de instrução não validar a deci­são do Ministério Público de afastar a regra da publicidade, nos termos do n.º 3 do referido artigo 86.º”

Tão drástica subversão da regra “natural” [na Exposição de motivos da Pro­posta de Lei n.º 157/ VII, que esteve na base da revisão do CPP de 1998, proclamou‑se: “o inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a investigação é, por natureza, inquisitório e secreto”] do carácter secreto do inquérito, adoptada, sem explicitação das respectivas motiva­ções, na última reunião da Comissão que procedeu à votação na especialidade dos projectos legislativos relativos à revisão do Código de Processo Penal, face a uma proposta de alteração apresentada, pela primeira vez, nessa ocasião, não pode ter deixado de causar as maiores per­plexidades aos intérpretes e aplicadores do direito (para além do citado artigo de Pedro Vaz Patto, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, em especial pp. 241‑246 e 253‑262; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II vol., 4.ª edição, Lisboa, 2008, pp. 21‑42; Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “Publicidade e segredo na última revisão do Código de Processo Penal”, em Estudos Come­morativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, vol. II, Lisboa, 2008, pp. 627‑664, a publicar também no referido n.º 9 da Revista do CEJ, no prelo; João G. A. Simas Santos, “Processo penal – Segredo de justiça – Decisão do Ministério Público e validação pelo juiz de instrução”, Revista do Ministério Público, ano 29, n.º 113, Janeiro‑Março 2008, pp. 131‑144; Antonieta Borges, “Publicidade do processo penal e segredo de justiça – Inquérito – Aplicação do n.º 6 do artigo 89.º do Código de Processo Penal”, Revista do Ministério Público, ano 29, n.º 114, Abril‑Junho 2008, pp. 151‑177; acór­dãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Fevereiro de 2008, P. 0747210, de 23 de Abril de 2008, P. 0841343, de 7 de Maio de 2008, P. 0811925, de 28 de Maio de 2008, P. 0842007, de 4 de Junho de 2008, P. 0813660, de 11 de Junho de 2008, P. 0842068, e de 25 de Junho de 2008, P. 0812926, em www.dgsi.pt/jtrp, e do Tribunal da Relação de Évora, de 27 de Dezembro de 2007, P. 3209/07‑1, em www.dgsi.pt/jtre; e Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra / Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Monitorização da Reforma Penal – Primeiro Relatório Semestral, 30 de Maio de 2008, pp. 39‑47).

2.3. A directa constitucionalização do dever de protecção do segredo de justiça ocorreu na revisão constitucio­nal de 1997, com o aditamento ao artigo 20.º de um n.º 3, do seguinte teor: “A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça” (sem prejuízo de, desde a revisão de 1989, o n.º 1 do artigo 35.º prever como limite ao direito dos cidadãos de tomar conhecimento dos dados constantes de ficheiros ou registos informáticos a seu respeito o disposto na lei sobre segredo de Estado e segredo de justiça, e o n.º 2 do artigo 268.º prever como limite ao direito de acesso dos cidadãos aos arquivos e registos administra­tivos o disposto na lei em matéria relativa à investigação criminal).
Esta inovação teve origem no Projecto de revisão constitucional n.º 5/VII, apre­sentado pelo PSD (DAR, II Série‑A, Suplemento ao n.º 27, de 7 de Março de 1996, pp. 484‑(44) a 484‑(60)), que preconizava a inserção de um n.º 2 no artigo 20.º da CRP, do seguinte teor: “Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, à protecção do segredo de justiça, ao patrocínio judiciário e a fazer‑se acompanhar de advo­gado perante qualquer autoridade”. Como resulta claramente do debate parlamentar, a auto­nomização da protecção do segredo de justiça no actual n.º 3, ficando no n.º 2 a consagração dos restantes direitos previstos naquele projecto (direitos à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e ao acompanhamento por advogado), visou primacialmente não reduzir a protecção do segredo de justiça a uma perspectiva de defesa dos direitos dos cidadãos, real­çando‑se que tal protecção se justifica também por necessidade de assegurar a eficiência da investigação criminal e do exercício da acção penal, no âmbito da função fundamental do Estado de garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático (artigo 9.º, alínea b), da CRP). Visou‑se, assim, afastar uma concepção do segredo de justiça que o visse apenas como “direito individual”, fazendo realçar que o segredo “é relevante também para o Ministério Público e para a máquina judicial” (Deputado José Magalhães, DAR, II Série‑RC, n.º 75, de 16 de Abril de 1997, p. 2176), que “o segredo de justiça é um valor estimável quer no âmbito da protecção dos direitos pessoais quer no âmbito da protecção do próprio processo de investigação e da actividade do Ministé­rio Público” (Deputado Luís Sá, DAR citado, p. 2176). Para além de não qualificar, “de forma monodimensional, o segredo de justiça como um direito de parte”, mantendo‑se a sua “pluri­dimensionalidade (…) e, portanto, o seu carácter expansivo em várias dimensões”, a nova norma constitucional não pode ser lida como uma mera remissão para a total liberdade de conformação da protecção do segredo de justiça pelo legislador ordinário, antes a exigência da adequação dessa protecção encerra uma impostergável injunção no sentido de que a inter­ven­ção legislativa satisfaça as “quatro dimensões” da “adequação”: “uma protecção que tenha um nível de protecção suficiente, apropriado, pertinente e, finalmente, eficaz” (Depu­tado José Magalhães, DAR citado, p. 2177). No sentido de a consagração constitucional da protecção adequada do segredo de justiça dever contemplar também a vertente da protecção da investi­gação criminal, cf. ainda as intervenções dos Deputados Odete Santos, Guilherme Silva e Luís Sá, no mesmo DAR, pp. 2179, 2180 e 2182.
A inserção da imposição de protecção do segredo de justiça no artigo 20.º (e não, por exemplo, no artigo 32.º) justifica‑se por não ser apenas no âmbito do processo penal que ele vigora, valendo também noutros processos que reclamem a tutela da reserva da inti­midade da vida privada e familiar (v. g., em acções de investigação de paternidade), como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coim­bra, 2005, pp. 204‑205), o que, de qualquer forma, não pode fazer esquecer a peculiar rele­vância que ele assume em processo criminal, tendo em vista “a protecção da eficácia da investigação e da honra do arguido” (autores e local citados). Trata‑se “de uma nova garan­tia institucional e não de um novo direito fundamental, sem prejuízo da sua dupla justifica­ção, subjectiva e objectiva” (Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000, p. 102). “Ao constituciona­lizar o segredo de justiça, a Constituição ergue‑o à categoria de bem constitucional, o qual poderá justificar o balanceamento com outros bens ou direitos ou, até, a restrição dos mes­mos (investigações jornalísticas de crimes, publicidade do processo, direito ao conhecimento do processo por parte de interessados), mas não deve servir para contradizer o exercício dos direitos de defesa (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/97)” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 414).
Como subli­nha Nuno Piçarra (O Inquérito Parlamentar e os seus Mode­los Constitucionais, Coimbra, 2004, p. 689), a eleva­ção do segredo de justiça “à cate­goria de bem constitu­cionalmente prote­gido acarreta, por um lado, uma limitação da margem de livre conforma­ção do legislador ordinário, que deixa de poder supri­mir tal segredo e fica vinculado a dar‑lhe um mínimo de efectivi­dade/operatividade. Por outro lado, os potenciais conflitos do segredo de justiça com outros bens cons­titucio­nais dever‑se‑ão resolver, não sacrifi­cando o primeiro aos últimos, mas obtendo a máxima harmonização prá­tica possível entre eles”.
Apesar de caber ao legislador concretizar o âmbito e os limites do segredo de justiça, resulta, porém, do n.º 3 do artigo 20.º da CRP, que o há‑de fazer “através de uma ponderação (…) dos vários direitos e interesses dignos de tutela e, potencialmente, confli­tuantes”, ponderação essa “sujeita ao controlo da constitucionalidade” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, obra e tomo citados, p. 205).

2.4. É justamente o controlo da constitucionalidade, sob o ponto de vista da adequação da ponderação subjacente, do critério normativo seguido pela decisão ora recorrida que este Tribunal é chamado a efectuar.
No presente caso, como das precedentes considerações resulta, não está em causa a apreciação de juízos de inconstitucionalidade com alcance mais vasto, que a doutrina tem dirigido ao novo regime da publicidade do inquérito.
Tal como resulta dos termos em que a questão de constitucionalidade foi colo­cada perante o tribunal recorrido e por ele decidida e veio a ser definida no requerimento de interposição de recurso, está em causa a apreciação da conformidade constitucional de um critério normativo, que radica no artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, e de acordo com o qual “deve ser per­mitida e não poder ser recusada, a todos os intervenientes proces­suais, designadamente ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancá­rios e fiscais sujeitos a segredo profis­sional nos termos do Regime Geral dos Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e da Lei Geral Tributária, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido con­cluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como meio de prova ou, pelo contrá­rio, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002”.
Procedendo à análise específica da norma do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, Frederico de Lacerda da Costa Pinto (“Publicidade e segredo na última revisão do Código de Processo Penal”, citado, n.ºs 5 a 7 da parte IV), começa por recordar que “a solu­ção do artigo 89.º, n.º 6, foi construída [no Anteprojecto e na Proposta de Lei] num contexto em que o Ministério Público decidia unilateralmente e sem controlo judicial do acesso ao processo, que ficaria em segredo de justiça enquanto o titular do inquérito não encerrasse esta fase processual. Portanto, o regime foi pensado para evi­tar um prolongamento excessivo do segredo de justiça dependente em todos os aspectos de uma única entidade – o que significava para o arguido a manutenção desse estatuto e para o assistente a ignorância do que estaria a ser feito, por força do regime de acesso aos autos”. “Ora – prossegue –, o regime mudou radicalmente com as alterações do Parlamento, pelo que a sua função esta­bilizadora dos diversos interesses em potencial conflito se encontra agora perdida e em risco de ser adulterada. No contexto da nova regulação do segredo de justiça e do acesso aos autos, matéria sujeita a um intenso con­trolo judicial, o regime do artigo 89.º, n.º 6, do CPP é razoavelmente desnecessá­rio e gera mais problemas do que aqueles que resolve, podendo facil­mente ser conver­tido num instrumento de boicote à investigação criminal. Por isso acho razoável insistir nas alterações legislativas referidas [criação no artigo 276.º de um regime de suspensão de contagem do prazo do inquérito quando estivessem em causa diligências a executar por terceiros, que não o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal, ou decla­ração da inaplicabilidade do regime à criminalidade organizada, em especial aos cri­mes económico‑financeiros, à corrupção e à criminalidade transnacional], ou mesmo ponderar a simples eliminação do preceito por desnecessidade da solução que consa­gra, porque os objectivos que visa são, no fundo, conseguidos pelos regimes de levan­tamento do segredo e de acesso aos autos, com con­trolo judicial: artigos 86.º, n.º 5, e 89.º, n.ºs 1 e 2, do CPP”.
Encarando a situação criada com a formulação actual do regime do segredo de justiça no inquérito, e especificamente da norma do n.º 6 do artigo 89.º, o autor citado ensaia um esforço de interpretação conforme à Constituição, sendo certo que, no seu entender, se tal for julgado inviável, se impõe um juízo de inconstitucio­nalidade. Aduz, nesse sentido, o seguinte:

“6. Resta saber se tal é possível por via do sistema hermenêutico, ou seja, ponderando e articulando as situações carentes de uma solução específica com elementos diversos do sistema legal, minimizar os incon­venientes do artigo 89.º, n.º 6, do CPP. Estou em crer que a gravidade do problema e a necessidade de tutelar a investigação criminal, como condi­ção essencial do sistema constitucional de administração da justiça, exi­gem uma solução praeter legem. Ou uma intervenção legislativa espe­cífica que acautele devi­damente os interesses em causa, nos termos ou com os contornos atrás refe­ridos, ou, enquanto tal não existir, uma solução hermenêutica que permita atingir tal resultado.
Os pontos de apoio para o efeito podem residir no regime de funda­men­tação e revelação de elementos na aplicação de medidas de coacção e no regime geral de quebra do segredo de justiça durante o inquérito. O dever de enunciar os indícios probatórios no despacho judi­cial de aplicação de medidas de coacção, dando‑os a conhecer ao arguido, tem limites, pois só tem de ser cumprido (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), n.º 5 e n.º 6) se não puser grave­mente em causa a investigação, se a sua reve­lação não impossibilitar a des­coberta da verdade ou se a sua revelação não criar perigo para a vida, inte­gridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime. Nestes casos, limita‑se o dever de fundamentar pro­batoriamente o despacho judicial (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), segunda parte). Estando perante um limite ao dever de revelar elementos do processo atra­vés da fundamentação do despacho e não perante uma excepção à possibi­lidade de aplicar a medida de coacção, isso significa que o acto pode conti­nuar a ser praticado sem ter, em tais casos, de se revelar os elementos. Esses elementos podem ser usados para decidir a aplicação da medida de coacção mas não são comunicados ao arguido, não podem ser consultados, tais omis­sões são legítimas e, por isso, não geram nulidade do despacho. Ora, se tal limite existe mesmo quando está em causa a prática de um acto profunda­mente limitador da liberdade do arguido, deveria valer igualmente quando existe a necessi­dade de tutelar tais interesses sem que esteja em causa a apli­cação de uma medida de coacção. As próprias quebras de segredo interno durante a investigação não a podem pôr em causa, como resulta expressa­mente do n.º 9 do artigo 86.º do CPP, o que confirma o elevado interesse público em não pôr em causa a investigação criminal.
Em conclusão, numa leitura articulada materialmente com o inte­resse pú­blico inerente à investigação criminal, o artigo 89.º, n.º 6, do CPP não pode permitir o acesso automático aos autos sempre que tal possa pôr gravemente em causa a investigação, se a sua revelação impossibilitar a descoberta da ver­dade ou se a sua revelação criar perigo para a vida, inte­gridade física ou psí­quica ou para a liberdade dos participantes proces­suais ou vítimas do crime.
Só cumpridas estas exigências se pode afirmar que se respeita o dis­posto no artigo 20.º, n.º 3, da Constituição, de acordo com o qual «a lei define e asse­gura a adequada protecção do segredo de justiça». O segredo de justiça não é um valor em si, tem antes uma vocação funcio­nal: serve para prote­ger a investigação e alguns interesses pessoais dignos de tutela nestas fases preliminares (v. g. interesses dos arguidos, suspei­tos, teste­munhas, vítimas). Uma norma processual que assegure os interes­ses dos arguidos no acesso ao processo, mas desproteja a investigação, ao ponto de a poder pôr em causa, é uma norma contrária às exigências do artigo 20.º, n.º 3, da CRP. […]
Por isso, entendo que os aplicadores do Direito nesta matéria podem e devem fazer uma interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do CPP con­forme a Cons­tituição (ao artigo 20.º, n.º 3, da Constituição), com vista a salvaguardar as con­dições da investigação criminal e interesses particula­res relevantes, nos ter­mos citados. O que pode realizar‑se com a aplica­ção analógica do limite do artigo 194.º, n.º 4, alínea b), por maioria de razão, e do artigo 86.º, n.º 9, ambos do CPP, aos casos de quebra do segredo interno por decurso do prazo, vedando‑se, por via judicial, o acesso dos particulares a elementos quando o seu conhecimento possa pôr gravemente em causa a investigação, impos­sibilitar a descoberta da ver­dade ou colocar em perigo as pessoas referidas no artigo 194.º, n.º 4, alí­nea b), do CPP. Solução que tem ainda o seu apoio no já citado artigo 86.º, n.º 9, do CPP.
Se assim não se entender, deve concluir‑se, para todos os efeitos legais, que o artigo 89.º, n.º 6, do CPP é inconstitucional porque, ao criar um regime de quebra automática do segredo interno num contexto em que o acesso ao processo deixou de estar nas mãos do MP e passou a ser controlado pelo JIC (artigo 89.º, n.ºs 1 e 2), põe em causa de forma grave e desnecessária a investigação criminal, pelo que não garante uma ade­quada protecção ao segredo de justiça, como exige o artigo 20.º, n.º 3, da Lei Fundamental.”

No presente caso, a decisão recorrida não adoptou a “interpretação conforme à Constituição” preconizada no estudo acabado de citar, antes adoptou como critério normativo – que este Tribunal tem de considerar como um dado da questão de constitucionalidade – o de que, findos os prazos previstos no artigo 276.º e os das prorrogações previstas no n.º 6 do artigo 89.º, o arguido tem acesso irrestrito a todos os elementos constantes do inquérito, inde­pendentemente da sua natureza.
Do que se trata é, pois, de apreciar se o apontado critério normativo satisfaz o requisito da adequação, constitucionalmente exigida pelo n.º 3 do artigo 20.º da CRP, da pro­tecção do segredo de justiça, tendo presente que, no presente caso, tal como a questão de constitucionalidade foi definida, dos valores constitucionais de que este instituto é instru­mento, apenas está em causa a protecção de direitos de outras pessoas, diferentes do reque­rente do acesso aos autos.
A resposta – adiante‑se desde já – é negativa.
Não se nega que subjacente ao regime do n.º 6 do artigo 89.º do CPP está a preocupação compreensível de proteger os arguidos (e outros interve­nientes processuais) de demoras excessivas na conclusão dos inquéritos, mas também não se pode ignorar que, muitas vezes, especialmente na criminalidade económica, a rápida conclusão do inquérito não depende exclusivamente da diligência do seu titular, o Ministério Público, por tal implicar a actividade de terceiras entidades (relatórios periciais, cartas rogatórias para outros países, etc.).
Acresce que, no presente caso, não está em causa o acesso do arguido a elemen­tos constantes do processo que sejam necessários para a adequada defesa dos seus direitos, designadamente para contrariar ou impugnar a aplicação de medidas de coacção, hipótese em que a jurisprudência deste Tribunal tem considerado não ser oponível o segredo de justiça, mesmo durante o decurso normal do prazo do inquérito (o que obteve consagração nos n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º e no n.º 4, alínea d), do artigo 141.º do CPP). Aliás, como se documenta na alegação do Ministério Público, os arguidos têm proficuamente exercitado o seu direito de impugnação de decisões que consideraram ter afectado os seus direitos, como a decisão que indeferiu arguição de nulidade do mandado de detenção, das decisões que decre­taram e mantiveram a prisão preventiva e da decisão que indeferiu arguição de nulidade de determinadas apreensões. O que agora está em causa é a possibilidade de conhecimento do que consta da globalidade do inquérito, pelo que o mero diferimento desse acesso para momento subsequente ao encerramento do inquérito se reveste de menor gravidade do que eventual recusa de acesso especificamente direccionado e justificado pela necessidade de defesa eficiente contra actos concretos que afectem a posição processual do arguido.
O critério normativo adoptado na decisão recorrida mostra‑se, assim, constitu­cionalmente inadequado na perspectiva da protecção de outros valores constitucionais cober­tos por outras formas de segredo e, designadamente, da protecção da privacidade de terceiros, já que o sacrifício (definitivo) deste valor não é necessário nem proporcionado para a tutela de interesses do requerente de acesso, que podem ser alcançados, em termos substantivos, em momento ulterior.
O Ministério Público limitou a recusa de acesso a documentos constantes do inquérito contendo “dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional”, salientando não ter sido ainda concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP.
A decisão recorrida adoptou um critério que não protege adequadamente os interesses de terceiros, consentindo a lesão da sua privacidade decorrente da irrestrita conces­são de acesso a todos os elementos do inquérito aos arguidos que o requere­ram, justamente por ter partido de uma interpretação segundo a qual, verificada a situação prevista no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o acesso franco do arguido ao inquérito é irrecusável, sejam quais forem os riscos de lesão de outros valores que daí resultem. Ora, importa não esquecer que, sendo certo que a inclusão no inquérito de elementos cobertos por esses tipos de segredo já pressu­pôs um juízo de admissibilidade da sua quebra em homenagem aos interes­ses da investigação, não menos certo é que estão em jogo outros valores constitucionalmente protegidos, ligados à reserva das pessoas em causa a que esses segredos respeitam (sobre a relevância do segredo bancário para a defesa da intimidade da vida privada, cf., por último, o Acórdão n.º 442/2007), que nada justificará sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova previsto no n.º 7 do artigo 86.º do CPP.
Ora, é este critério normativo que, pelas razões expostas, se considera não respei­tar a adequação na protecção do segredo de justiça que o artigo 20.º, n.º 3, da CRP impõe ao legislador.

3. Decisão
Em face do exposto, decide‑se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerra­mento do inqué­rito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida pri­vada de outras pessoas, abran­gendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido con­cluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devo­lução, nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Agosto de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Silva Rodrigues (Vencido de acordo com a declaração de voto que anexarei)
Rui Manuel Moura Ramos


DECLARAÇÃO DE VOTO

1 – Votei vencido, por não poder acompanhar a tese da maioria que subscreveu o acórdão.

2 – O acórdão chegou à solução de inconstitucionalidade do art.º 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, por, em termos resumidos, entender que o preceito “não assegura a adequada protecção do segredo de justiça”, violando, por este modo, o disposto na segunda parte do n.º 3 do art.º 20.º da CRP.
Para assim concluir, o acórdão entendeu que, se era de aceitar a quebra do segredo relativamente a documentos do processo constantes do inquérito contendo “dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional”, “em homenagem aos interesses da investigação”, “já nada justificará que esses elementos sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes interve­nientes processuais sem que previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova pre­visto no n.º 7 do art.º 86.º do CPP”.

3 – O acórdão censurou, deste jeito, o juízo de proporcionalidade levado a cabo pelo legislador subjacente à opção normativo-constitutiva constante do preceito, com base num seu diferente juízo de proporcionalidade.
Ao dispor no n.º 3 do art.º 20.º que “a lei define e assegura a adequada protec­ção do segredo de justiça”, a Constituição remeteu para o legislador ordinário não só a defi­nição dos diversos conteúdos do segredo de justiça, como a previsão dos termos em que a protecção desses conteúdos deve ser assegurada, apenas exigindo, quanto a tais termos, que eles sejam adequados.
O diploma fundamental deixa, pois, para o legislador ordinário a tarefa de cons­truir o regime do segredo de justiça, tarefa esta de que se desembaraçou nos art.ºs 86.º a 89.º do CPP, impondo-lhe apenas que, na regulação das situações de confronto entre os diver­sos bens a tutelar (liberdade, honra e bom nome do arguido, presunção de inocência do arguido, garantia dos direitos de defesa do arguido, princípio do inquisitório ou da investiga­ção criminal, respeito pelos direitos de terceiro, verdade material, celeridade processual), seja seguido o princípio da proporcionalidade.
A obediência a tal princípio seria, de resto, postulada directamente pela própria natureza do segredo, enquanto garantia fundamental institucional, funcionalizada para a sal­vaguarda de interesses prosseguidos pelo “estatuto” da investigação criminal e reclamados pelo “estatuto” do arguido.
No Acórdão n.º 634/93, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribu­nal Constitucional caracterizou o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:

«[...] o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincí­pios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

E, debruçando-se sobre o sentido do princípio da adequação, afirmou-se no Acórdão n.º 159/07, disponível no mesmo site:

«O princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as medidas res­tritivas “sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para o alcançar” (Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente previstas na Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 731). De acordo com este controlo de aptidão, devem apenas considerar-se inidóneas as medidas restritivas cujos efeitos sejam “indiferentes, inócuos ou até negati­vos, tomando como referência a aproximação do fim prosseguido com a restri­ção” (obra citada, p. 738)».

Por seu lado, escreveu-se no Acórdão n.º 187/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:

«[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empí­ricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabele­cer.
[…] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apre­ciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador.
[…] a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitu­cionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro mani­festo de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.»

Ora, foi uma atitude exactamente inversa a esta boa doutrina, constantemente renovada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a tese da maioria seguiu.
E fê-lo, a nosso ver, esquecendo ou esvaziando de sentido diversos pressupos­tos legislativos em torno dos quais a solução constitucionalmente agora censurada foi cons­truída pelo legislador ordinário.
Antes de mais, importa dizer que se aceita que a opção legislativa concretizada na norma possa não corresponder à melhor solução de regulação dos bens que aqui se defrontam, especialmente quando esteja em causa a investigação de determinados tipos de criminalidade, como sejam a económica ou a fiscal, ou em que haja a necessidade de colabo­ração de entidades estrangeiras.
Mas esse é um problema que deve apoquentar apenas o legislador ordinário e motivá-lo a alterar a lei, que não o juiz constitucional, sendo que muita da doutrina citada no acórdão se situa nesse plano.
Por outro lado, admite-se, ainda, que o art.º 89.º, n.º 6, do CPP possa eventual­mente ser entendido em termos mais restritos do que aqueles que o acórdão recorrido sufra­gou, recorrendo-se, por exemplo, a uma interpretação conjugada com o disposto no n.º 7 do art.º 86.º do CPP (que não deixa de constituir também leit motiv da maioria), que possibilite a recusa de acesso a determinados documentos com base em razões concretamente explicitadas no despacho judicial, para salvaguarda de valores que se insiram no núcleo essencial dos direitos fundamentais, sem que essa solução seja constitucionalmente insolvente.
Mas também não é esse o problema que aqui está colocado. Não cabe ao Tribu­nal Constitucional dizer qual é o melhor direito, mas apenas se o direito dito como foi dito é não direito válido.
Ora, a tese da maioria esquece ou irreleva totalmente a circunstância de a que­bra do segredo prevista no art.º 89.º, n.º 6, do CPP, que foi aplicada ao caso, dizer respeito apenas ao arguido, que não também a outros intervenientes processuais, sendo certo que não pode aferir-se pelo mesmo diapasão o interesse dos diversos intervenientes processuais na quebra do segredo na fase do inquérito, já que os interesses do assistente e do ofendido são, pelo menos no seu essencial, prosseguidos pelo Ministério Público. Estes não estão, segura­mente, do mesmo lado da relação jurídico-processual-penal em que se situa o arguido.
A possibilidade do arguido “poder consultar todos os elementos do processo que se encontre em segredo de justiça” abre-lhe, desde logo, nesse momento, a possibilidade de poder contradizer ou esclarecer dados dele constantes e assim contribuir para o mais rápido esclarecimento da situação penal.
Ora, a celeridade da justiça é um bem constitucional que deve ser eficazmente prosseguido.
Por outro lado, o princípio do contraditório, conquanto emerja com diferentes intensidades nas diversas fases do processo conformadas pelo mesmo legislador ordinário, não demanda que não possa ser exercido nas situações em que o processo se tornou total­mente conhecido pelo arguido, nas condições do art.º 89.º, n.º 6, do CPP, bem diferentes das recortadas nas alíneas anteriores do mesmo artigo.
Não é indiferente e irrelevante a possibilidade de o arguido contradizer e esclare­cer hoje ou amanhã os dados mantidos secretos, como é a tese da maioria. Contra isso vai o princípio da celeridade processual e da justiça e os pressupostos que o justificam.
É ao legislador que cabe, em primeira linha, nos termos do n.º 3 do art. 20.º da Constituição, fazer a ponderação dos bens que estão em tensão no segredo de justiça direc­cionado para o arguido, maxime, o grau de protecção que, no momento a que se refere o art.º 89.º, n.º 6, do CPP, deve ser conferido ao interesse público da investigação criminal e a todas as garantias de defesa do arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP).
Mas a tese da maioria esqueceu, ainda, que a quebra do segredo de justiça, em relação ao arguido, que é a dimensão que está em causa, apenas ocorre depois de esgotados os prazos de duração máxima do inquérito previstos no art.º 276.º do CPP, bem como a circuns­tância de o segredo poder ser “adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado por uma só vez” (art.º 89.º, n.º 6, do CPP).
Ora, ao eleger os prazos de duração máxima do inquérito, com os quais conec­tou a existência do segredo de justiça, bem como ao prever a possibilidade de extensão tem­poral desse segredo por tal período suplementar, o legislador ordinário efectuou, dentro da sua discricionariedade constitutiva, uma ponderação em abstracto dos bens ou valores confli­tuantes referidos no acórdão, que importa ser respeitada, por não se afigurar ser desadequada à harmonização prática, na medida do possível, daqueles valores, nesse momento do processo tido por ele como suficiente para a investigação em segredo.
Com a solução ditada pelo acórdão, a maioria estendeu o segredo de justiça por tempo indeterminado.
Enquanto não for concluída a análise dos elementos “bancários e fiscais”, “em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do art.º 86.º, n.º 7, do CPP”, o segredo relativo a esses elementos e documentos mantém-se: no mínimo até à dedução da acusação e, no limite, até à extinção por prescrição do procedimento criminal.
Ora, nada na Constituição impõe que o segredo tenha de perdurar por todo o tempo que pode ter na prática a fase do inquérito, até porque a definição do “tempo legal” foi deixada ao legislador ordinário.
Situando-se, de resto, a falta de conclusão da análise dos elementos em causa na sede do titular da investigação criminal, não deixa de ser absurdo que seja ele quem “tira proveito” da ineficiência ou ineficácia a que o sistema porventura conduza.
Mas há mais.
A tese da maioria esquece que os elementos bancários e fiscais que importa considerar, ainda que ligados à esfera privada de terceiros, são apenas aqueles que possam constituir meios de prova (n.º 7 do art.º 86.º do CPP).
Assim sendo, impõe-se que o titular da investigação criminal nem sequer incor­pore no processo, e os destrua ou devolva à pessoa a que digam respeito, os elementos que não tenham aptidão para servir de meios de prova.
Mesmo relativamente àqueles meios, a possível lesão da intimidade da vida privada decorre, essencialmente, não directa e imediatamente, da actividade processual do arguido (a sua consulta nos autos) mas da actividade anterior de investigação.
Não se vê que interesses constitucionalmente protegidos, realizada que foi deter­minada acção de investigação a coberto da prossecução dos interesses da justiça crimi­nal, imponham que continue a ser constitucionalmente subtraída ao arguido, ainda no momento assinalado pelo art.º 89.º, n.º 6, do CPP, a possibilidade de logo os conhecer, dado que tal não deixa de corresponder a uma simples antecipação, em caso de dedução de acusa­ção.
Deste modo, a lesão justificativa da leitura feita pela maioria limitar-se-ia, ape­nas, ao risco de serem conhecidos, além desses, também os outros documentos que a acusação não revelará.
Mas estando esgotado o prazo de duração máxima do inquérito e das prorroga­ções do segredo de justiça, ponderadas pelo legislador como suficientes para realizar a inves­tigação em segredo, afigura-se ser bem mais relevante salvaguardar a opção do legislador que passou por atender prevalentemente aos interesses do arguido e à possibilidade de logo exer­cer todos os meios de defesa previstos na lei.
De resto, a possibilidade de consulta do arguido dos elementos do processo não tolhe a investigação criminal de poder prosseguir.
O que acontece é, apenas, que essa investigação, quando relativa aos elementos constantes do processo, passa a ser uma investigação aberta logo à possibilidade de contradi­tório.
Por outro lado, não poderá esquecer-se que os direitos cobertos pela reserva da vida privada, que estão em causa (elementos bancários e fiscais), nem sequer integram o con­teúdo essencial de qualquer direito fundamental, demandando uma tutela constitucional mais enfraquecida, entendendo o legislador ser ela merecedora de menor protecção que o acesso do arguido a esses elementos, em nome de um direito constitucional de defesa.
Mas a tese da maioria irrelevou ainda um factor verdadeiramente decisivo.
Referimo-nos ao facto de a consulta do processo, ao abrigo do disposto no art.º 89.º, n.º 6, do CPP, não exonerar o arguido do dever de manter o segredo de justiça relativa­mente aos elementos a que acedeu. O arguido fica na mesma posição do titular do Ministério Público que prossegue a investigação.
Ora, conquanto se possa convocar o facto de o titular do Ministério Público estar inserido em uma organização institucional e sujeito a uma hierarquia e disso poder fun­cionar como elemento dissuasor da quebra do segredo, não vemos que tal constitua, então, razão suficiente para continuar a fundamentar uma diferenciação no acesso ao conhecimento dos meios de prova quando estes tenham implicado a quebra do segredo tutelador de direitos abrangidos pela reserva da vida privada, dado o facto de, também, o arguido estar abrangido pelo tipo legal de crime recortado no art.º 371.º do Código Penal (violação de segredo de jus­tiça).
A tese que fez vencimento consubstancia uma substituição da ponderação levada a cabo pelo legislador ordinário, fora do âmbito essencial do regime do segredo, por­quanto relativa ao tempo da sua duração no que vai para além dos prazos de duração máxima do inquérito e de um certo alongamento desse prazo em algumas circunstâncias.
Nestes termos, a pretexto de garantir um conteúdo mínimo ao segredo de jus­tiça, a maioria acabou por conceder uma protecção máxima (de tipo absoluto) ao princípio da investigação criminal, durante a fase do inquérito, com detrimento da eficácia e eficiência da garantia constitucional de que o processo criminal assegura (no tempo adequado) todas as garantias de defesa ao arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP), sendo que a solução agora censurada encontra a sua razão de ser na opção do legislador ordinário pela eficácia desta última garan­tia, decorridas que se mostram a duração máxima legal do inquérito, definida na lei e dentro dos termos que lhe são constitucionalmente permitidos, e ainda a prorrogação de tempo de segredo prevista no preceito.

Benjamim Silva Rodrigues